Mês 1 - O primeiro |
2020, verão. O descontrole da pandemia global trouxe como primeiro impacto o isolamento não planejado em uma área rural, o trabalho à distância, a angústia, a dissolução de todas as certezas e um absoluto bloqueio criativo e da vontade de fotografar. Um ano inteiro em que o olhar circunscreveu-se a um quadrado de 100 x 100 metros e que, paulatinamente, foi desvelando-se um imenso universo miniaturizado de detalhes, dramas, vida e surpresas. Com o passar dos dias, das semanas e das estações, o interesse e a criatividade sufocados pelo tsunami depressivo que seguiu a esteira da pandemia foram aos poucos renascendo na observação das pequenas nuances diárias, da mudança do clima, das cores e texturas, a noite e o dia, os horários de sol e as fases da lua, as vozes da natureza e dos seus habitantes.
Contínuos e assíduos visitantes deixaram logo claro que um atribulado mundo cosmopolita de seres seguia alheio à catástrofe humana na barca de Gaia. Enquanto os vilarejos seguiam com as ruas desertas, portas e janelas fechadas e igrejas sem vozes e ecos, fatos cíclicos e ordinários do fluxo natural tornaram-se esperados eventos no meu pequeno quadrilátero verde. Fogo e água. Claro e escuro. Calor e frio. O movimento é pulsante e tudo se entrelaça. Em uma ode de Neruda o bem-te-vi duela todas as manhãs com o seu reflexo, um dinossauro-lagarto singra o gramado, a chuva explode em dilúvio, a paineira veste-se para a guerra em armadura de espinhos, um coração de seda recheado de sementes é trespassado por uma flecha de algodão. Araucárias dentro de uma gota d’água? Aliens no jardim? Um colar multicor ou a víbora que matou Cleópatra? Onde estou? O que vejo? O que é real? Geada e orvalho ao amanhecer, neblina, sol, neblina, sol, noite de lua, noite de estrelas. Com pinhões, laranjas, bergamotas, limões, nozes, pitangas, ameixas e uvas, a flora retribui a mancheias os cuidados recebidos. Dentre os visitantes alados, os tucanos substituem as corujas no turno e anunciam a alvorada às 5h00 da manhã. Cardeal, bem-te-vi, sabiá, joão-de-barro, corruíra, caturrita, papagaio, beija-flor, bacurau, jacu, gavião, urubu e casa nova para o pica-pau. Há espaço para todos! Tantos detalhes, cores e vida se descortinam intermitentemente sem que um único dia seja igual ao seguinte.
2021, inverno. Um ano e meio em pandemia. Semanas transformaram-se em meses e a tragédia no mundo humano enfim arrefece enquanto a ciência, segura e impávida, avança sobre a peste e o obscurantismo medievo que a acompanha par e passo. Pequenas janelas de liberdade sanitária autorizam a mobilidade e a porteira do quadrado se abre. A câmera ganha caminhos rumo ao planalto serrano e os campos da fronteira, ávida de espaços e longínquos horizontes que só o Pampa sem fim tem igual. O olhar circunscrito ao micro-terra agora quer o macro-céu, enquanto o obturador que congela o tempo volta-se para a infinitude do espaço. Os minúsculos universos circundantes em tons de cinza e pastel transmutam-se em explosões de cores, paisagens, céus, astros e estrelas, prenunciando o retorno do contato humano, a alegria, o recomeço e o reacreditar na utopia de uma Fênix pós-pandêmica. Por mais natureza, vida, oxigênio, solidariedade, humanidade, humildade e temperança! Vamos sobreviver.
Dois anos retratados em 24 simbólicos clicks, e o último deles - a Árvore da Vida, sepulta um ciclo de luto e luta, de aprendizado, resiliência, reconstrução e vitória, celebrando com imenso júbilo e regozijo a tão esperada notícia estampada em primeira página de todos os jornais:
- ADIADO O FIM DO MUNDO!
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O presente ensaio foi escrito em dez/2021 especialmente para a editoria Utopias pós-pandêmicas, da Secretaria de Comunicação Social do Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região, em Porto Alegre/RS e inspirado na obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo, do ambientalista Ailton Krenak.
Texto e fotografias de João Paulo Lucena.