Nesta hora somos todos iguais e, em bom português isto quer dizer que ficamos mais sensíveis, atentos a alguns aspectos da vida que tempos antes nos passariam totalmente despercebidos.
Assim, nesta semana, lendo o jornal durante meu intervalo de almoço, deparei quase por acaso com uma crônica do meu conterrâneo Fabrício Carpinejar, poeta e escritor, escrevendo justamente sobre este tema.
Ali, durante uma viagem, de repente ele se descobre vendo o filho de oito anos crescer, rememorando ao mesmo tempo sua relação com o pai durante a infância, num processo contínuo que se repete entre as gerações desde o começo dos tempos...
Em uma condição idêntica à do Fabrício me permito escapar um pouco dos assuntos tradicionais do blog e replico aí para vocês esta sensível crônica deste talentoso escritor.
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"OITO ANOS
Vivo uma maratona de viagens, descanso numa cidade e acordo noutra. Como durmo pouco, a namorada insistiu para que pelo menos aproveitasse o travesseiro e adquirisse abrigos e camisetas brancas. Dolorido gastar com o sono, sair com uma sacola do shopping para desaparecer, anônimo, entre os lençóis. Eu me via como um idiota, a quantia deveria ter sido direcionada a melhorar o visual no trabalho.
O homem tem pavor do acessório. Não costuma inaugurar roupas na hora de deitar. Usa a que for mais folgada, e não pensa mais nisso. Da mesma forma não se preocupa com cuecas e meias. Nunca repara na cama, nas colchas e edredons, a não ser no início do casamento. Não sei como nossa espécie não foi extinta até hoje. Depois que aceitamos o pijama, também não precisamos mais pagar ônibus – é que ficamos velhos. Aliás, macho não compra pijama, somente recebe de sua mãe ou de sua mulher.
Mas atendi a mudança de costumes e separei as peças para testar no hotel de Torres. Vencido o compromisso, de banho tomado, sossegado no quarto, abri a mala para colocar a calça. Ela murchou, não entrava. Estranhamente encolheu. Parecia grande, mas não o suficiente. Confundi o número na loja? Botei a perna esquerda e trancou mesmo. Observei que não era minha, mas de Vicente.
A possibilidade do engano é que me transtornava. Como meu filho amadureceu tanto a ponto de confundir minha calça com a dele? Cético, pasmo, estendi o abrigo na cama para comprovar sua altura, assim como meu pai conferia meu crescimento com a fita métrica – lembro que ria todo orgulhoso com o veredito. Às vezes, o pai mentia o avanço (não podia crescer três centímetros todo dia), porém acreditava, não desconfiava das boas notícias.
Acariciei cada linha do pano e imaginei o peso, o tamanho, a envergadura atual do meu Vicente. Não é que sou distraído, é que ele me surpreende sempre. Fui tocando em seu tempo, nos fios costurados de seu tempo, revendo suas gargalhadas na banheira azul, o espanto com o vaivém do balanço, as corridas vacilantes de cisne, o andar firme e decidido ao atravessar a rua, a concentração na primeira aula, o temperamento de virar a cabeça quando apanhado no colo, os cabelos compridos de roqueiro. Seus oito anos deslizaram pelos dedos. Transformei as mãos num ferro elétrico, desamassando os vincos, desfazendo as dobras. O rio subia os muros, avançava as marcas. Já havia uma enchente na minha respiração.
Ai,Vicente, você cresceu e nem me avisou."
Por Fabrício Carpinejar.
Publicado no blog Carpinejar em 25/10/2010
Publicado no Jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 25/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16499
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