domingo, dezembro 23, 2012

O Natal de 72: um milagre na montanha!

Local do acidente na Cordilheira dos Andes - Imagem atual no verão
Fonte: Viven!

O texto que segue foi publicado originalmente neste blog em 27 de dezembro de 2011, quando o escrevi na praia de Torres/RS depois de ter lido, algum tempo antes, o livro La Sociedad de la Nieve.

Em função do espaço na mídia que foi reocupado pelo tema em função do aniversário de 4 décadas deste fato, e dada a impressionante mensagem de vida que ele nos trás, resolvi republicá-lo na íntegra aqui no Terra Australis, atualizando unicamente a data do aniversário, que no ano passado, quando escrito, contava com 39 anos.

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Há exatamente 40 anos um grupo de dezesseis cavalheiros se reúne a cada noite de 23 de dezembro para cumprir um sagrado pacto. O local uma acolhedora sala de madeira, pedra e lareira em uma casa de Montevidéu, Uruguai. Como motivo o encontro anual da Sociedade da Neve para a celebração do milagre do seu reencontro com a vida.

Engenheiros, agrônomos, empresários, médicos, pouco importa a profissão, o credo ou a origem, pois em comum partilham uma memória do passado e a coincidência de serem todos homens. Se hoje é o fogo que os reúne, há quase quatro décadas foi de gelo a têmpera que forjou para sempre um inquebrantável vínculo de aço.

José Pedro, Roberto Canessa, Roberto François, Alfredo, Daniel, Roy, José Luis, Alvaro, Javier, Carlitos, Fernando, Ramón, Adolfo, Eduardo, Antonio e Gustavo. Todos na faixa dos 60 anos são os dezesseis uruguaios que sobreviveram ao acidente do tristemente célebre Vôo 571 da Força Aérea Uruguaia, que os aprisionou sem qualquer recurso por 73 dias no coração da Cordilheira dos Andes.

O ACIDENTE

A história é bem conhecida. Em outubro de 1972 quarenta e cinco passageiros, na sua maioria jovens na faixa dos 20 anos de idade e integrantes de um time colegial de rugby, embarcaram em um vôo fretado em Montevideo rumo a Santiago do Chile. Durante a travessia dos Andes uma tempestade e erros de navegação levaram a aeronave Fairchild a chocar-se contra o pico de uma montanha, perdendo as asas e a cauda e deslizando por uma encosta recoberta de neve até um vale isolado na cordilheira.

Fotos originais captadas pelos sobreviventes em 1972
Fonte: La Sociedad de la Nieve
Apesar de 30 passageiros terem milagrosamente sobrevivido ao choque imediato, tecnicamente uma verdadeira façanha, foram ainda obrigados a resistir sem qualquer preparo, comida e medicamentos a temperaturas abaixo dos 30 graus negativos trajando apenas leves roupas de verão. Dez dias após um pequeno rádio de pilhas trouxe a desesperadora notícia de que as operações de resgate haviam sido oficialmente encerradas, deixando os sobreviventes à sua própria sorte.

A absoluta falta de comida, o instinto de sobrevivência e um esforço enorme para vencerem barreiras pessoais e religiosas ínsitas à cultura humana universal, além de uma visceral repugnância física ao canibalismo, fez com que recorressem aos corpos dos amigos falecidos como fonte de alimento. Como se isto fosse pouco, os ferimentos do acidente e uma grande avalanche reduziram outra vez o grupo aos seus atuais 16 integrantes.

Fotos originais captadas pelos sobreviventes em 1972
Fonte: La Sociedad de la Nieve
Após dois meses isolados na montanha e com a perspectiva de morrerem por inanição, em uma heroica jornada de dez dias sem qualquer conhecimento de técnicas de montanhismo, Nando Parrado e Roberto Canessa conseguiram chegar à localidade de Los Maitenes, no Chile e contatar as forças de socorro.

Foi então que no dia 23 de dezembro de 1972, véspera das celebrações de Natal em todo o planeta, quando o último dos 16 sobreviventes foi resgatado da montanha pelos helicópteros nasceu a Sociedade da Neve.


Imagem captada a partir do helicoptero de resgate - 1972
Fonte: La Sociedad de la Nieve

UMA GRANDE FAÇANHA

A National Geographic qualificou a jornada de autoresgate dos uruguaios como um dos grandes épicos do século XX, motivo suficiente para ser rememorada, estudada e celebrada como um verdadeiro triunfo do espírito humano sobre as adversidades e forças da natureza que então pareciam invencíveis.

Se simplesmente resistir ao acidente com o Fairchild foi um desafio à lei das probabilidades, tudo o que sucedeu a partir daí até a retirada do último passageiro da montanha foi também fruto da coragem, inteligência, engenhosidade, união, fé e do espírito de grupo dos acidentados, vários deles pouco mais do que adolescentes recém egressos da escola e acostumados com a tranquila vida da classe média alta de Montevideo.

O time de rugby. Fonte: La Sociedad de la Nieve
E se para os olhos da sociedade de 1972 a necessidade de recorrerem ao canibalismo foi a violação de um autêntico tabu, hoje o caso é admirado e revisitado sob os enfoques da medicina, da psicologia e da administração, assim como pelo estudo das técnicas de sobrevivência em situações extremas tendo em conta o acerto das decisões tomadas pelo grupo.

Fotos originais captadas pelos sobreviventes em 1972
Fonte: La Sociedad de la Nieve

Fotos originais captadas pelos sobreviventes em 1972
Fonte: La Sociedad de la Nieve

Passados os anos, o Vôo 571 do Fairchild assumiu uma certa aura cult. O que antes era um ponto isolado na montanha hoje pode ser visitado por meio de expedições especiais até os destroços do avião. Livros foram escritos e produzidos filmes sobre o caso. A cultura superconsumista do Século XXI, ávida de novidades efêmeras, requentou seu interesse sobre o acidente e os integrantes da Sociedade da Neve, esquecidos por quase duas décadas, hoje ministram palestras por todo o mundo e mantêm uma fundação que auxilia comunidades carentes. Tudo a favor, ponto para eles!

LITERATURA E CINEMA

Em 74 foi lançado internacionalmente o livro com o relato da história a partir das entrevistas feitas pelo britânico Piers Paul Read, No Brasil recebeu o título de “Os Sobreviventes” (Alive), um best seller constantemente reeditado no mundo.

Com farta divulgação do caso na mídia e apesar dos meus pais terem escondido o livro por tratar-se uma leitura muito “forte” para mim, aproveitei a distração em um final de semana de férias na praia Paraíso (RS) e encontrei o livro na mesa de cabeceira. Com a limitada compreensão de uma criança de apenas 9 anos mas já com o espírito de um futuro devorador de livros, avancei o que pude sobre suas páginas e fotografias antes que fosse descoberto. Mas meus pais tinham razão. O conteúdo crú do relato fez com que até hoje eu relembre perfeitamente estes ingênuos e distantes momentos de ilícito infantil.

Com o passar do tempo o assunto voltou às manchetes com a bem produzida versão cinematográfica de "Vivos!" (Alive, 1993), narrado por ninguém menos do que John Malkovich. Terminei por reler com olhos maduros o ainda excelente e detalhado relato original de Piers Paul Read e também as versões de Nando Parrado (Milagre nos Andes, São Paulo: Objetiva, 2006) e de Carlitos Paez (Despúes del Día 10, Alienta, ISBN 9788493521264, 2007), esta sem tradução no Brasil.

Há pouco ganhei de presente e literalmente degustei “La Sociedad de la Nieve”, de Pablo Vierci (Sudamericana, ISBN 9789500729758, 2008), tido como o livro definitivo sobre esta epopeia. Nele os 16 sobreviventes, já estabelecidos na vida, pais de família e avôs, com parte dos seus fantasmas exorcizados, apresentam suas reflexões depois de 35 anos do acidente, alguns saindo do retiro pela primeira vez desde os anos 70. O autor acompanhou os sobreviventes e seus filhos em uma visita ao local de acidente em 2006, dando origem ao livro e também a um tocante documentário ("La Sociedad de la Nieve" / Stranded", de Gonzalo Arijón, 2008).

Apesar de já ter lido muitas obras do gênero e me achar calejado com relatos de situações extremas, não pude deixar de me emocionar com as impressões individuais dos 16 coautores, cada uma delas com um enfoque tocante, original e de todo diferente dos demais. O livro, que comecei a ler meio desconfiado de ser uma estratégia caça-níqueis sobre o tema, foi uma gratíssima surpresa e lamento que tanto ele quanto o documentário com o mesmo nome não tenham tido no nosso país a divulgação que merecem.


Se nestes dias de Natal somos levados a direcionar nossos pensamentos para ideais de paz e fraternidade, independente de credo ou convicção, vale saber, e lembrar, que na última noite do dia 23 de dezembro, assim como o farão a cada ano enquanto viverem, os 16 membros da Sociedade da Neve estiveram reunidos com seus amigos e familiares para celebrar o milagre daquele longínquo Natal de 1972.

Testemunhos verdadeiros desta inacreditável vitória diante da adversidade extrema, em que somente a coesão como grupo lhes permitiu o reencontro com a vida, eles nos fazem lembrar com humildade que, em um tempo em que Gaia se revolta contra os séculos de desmesurada agressão humana, diante dos elementos da natureza somos ínfimos e somente a união, a fraternidade e a fortaleza de espírito nos fazem todos sobreviventes neste planeta que nos serve de lar.

Um Feliz Natal e um grande 2013 para todos nós!

(** Nota do Autor: Existirem fotografias originais da época como documento dos dias de isolamento dos sobreviventes na montanha é algo extremamente raro e importante. Me fez lembrar as fantásticas imagens em chapa de vidro captadas pelo australiano Frank Hurley na expedição de Shackleton à Antártida e que hoje, um século depois, constituem um registro histórico de valor absolutamente inigualável.)

Sobreviventes e familiares das vítimas formaram a Fundación Viven. Em pé (da esq. para a direita): Roberto François, Carlos Páez, Alfredo Delgado, Fernando Parrado, Gustavo Zerbino, Antonio Vizintín, Adolfo Strauch, Javier Methol, Ramón Sabella, Eduardo Strauch. Sentados (da esq. para a direita): Álvaro Mangino, José Luis Inciarte, Roy Harley, Pedro Algorta, Roberto Canessa e Daniel Fernández Strauch. Foto Jornal Zero Hora, 23/12/2012

PARA SABER MAIS:

- Viven! – Site oficial da Sociedade da Neve
- La Sociedad de la Nieve (la película) trailer
- La Sociedad de la Nieve - Site da produção do filme, com excelentes imagens da época e da produção
- Alive movie trailer - HD
- Alive Survivors Look Back – National Geographic Adventure
- Nando Parrado – Site oficial
- Perfil de Nando Parrado no Facebook
- Carlitos Paez – Site oficial
- Antonio Vizintin – Site oficial


ALGUMAS IMAGENS DO DOCUMENTÁRIO "LA SOCIEDAD DE LA NIEVE" - Fotografias de César Charlone
















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O Jornal Zero Hora, de Porto Alegre/RS, publicou na sua edição de 23/12/2012 também uma matéria marcando os 40 anos do acidente do Fairchild de 1972. Segue o texto (clique para ampliar):



4 comentários:

  1. História incrível.... muito legal o post!
    Grande abraço.
    Larisse

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    1. Larisse e Marcelo! Tudo legal? Obrigado pelo interesse no blog e o incentivo de vocês. Um abração e um feliz 2012 para todos nós!

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  2. Maravilhosa a História!
    Muito bem escrita! Sem falar das fotos perfeitas!
    Um dia chegarei a esse nível!
    Parabéns!
    Marcio
    Aventureiro Urbano
    http://aventureirourb.blogspot.com.br

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    1. Caro Márcio, obrigado pelos comentários! São registros assim que estimulam a manutenção das postagens do Terra Australis. Grande abraço!

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