terça-feira, outubro 25, 2011

No tempo das charqueadas - Parte 3: A São João, Saint-Hilaire e os escravos de saladeiro


Charqueada São João, 1810. Pelotas/RS
No Tempo das Charqueadas (série de 3 postagens):

Parte I - Pelotas, a origem
Parte II - A Santa Rita e sua pousada de charme
Parte III - A São João, Saint-Hilaire e os escravos de saladeiro

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Margem do Rio Pelotas, 6 de setembro, 1820. - "Dada a hora avançada de nossa chegada a casa do Sr. Chaves, nada pude dizer ainda a respeito. A casa está situada do modo mais favorável, pois os iates podem chegar até junto dela. A residência do proprietário é de um pavimento apenas, porém grande, coberta com telhas e um pouco elevado do solo. Interiormente é dividida em grandes peças que se comunicam umas com as outras e que ao mesmo tempo se abrem para fora." 
Auguste de Saint-Hilaire

As palavras do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire poderiam ter sido escritas nos dias de hoje pois descrevem perfeitamente o atual estado de conservação da bicentenária Charqueada São João, localizada em Pelotas/RS.

Construída entre 1807 e 1810 pelo português Antônio Gonçalves Chaves, visitá-la é voltar dois séculos no tempo, a um local milagrosamente preservado em todos os seus detalhes e esplendor histórico.

A construção em sua estrutura, objetos e mobiliário resiste como um testemunho magnífico da vida rural gaúcha nos séculos 18 e 19, bem como do sistema escravista que lhe deu sustentação econômica.

Mérito, por certo, daqueles que ali habitaram em todo este tempo e, de forma muito especial, da  Família Mazza, proprietária desde 1952 e que a manteve preservada e restaurada da maneira mais próxima à original, ainda utilizando-a hoje como sua moradia.

Não por outro motivo o local serviu como locação para as gravações da mini-série "A Casa das Sete Mulheres" (Rede Globo, 2002).

A São João está situada a pouca distância da Charqueada Santa Rita, e está citada na obra do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou alguns anos pelo Brasil, tendo escrito importantes relatos sobre os costumes e paisagens do nosso país no século XIX.

A casa grande foi construída com um pátio interno de trabalho a fim de facilitar a defesa, não somente contra ataques espanhóis mas também contra revoltas de escravos

Ali hospedado no longínquo ano de 1820, Saint-Hilaire descreveu a casa principal e os varais para secagem do charque:

"Hospedaram-me num quarto pouco iluminado, dando para uma sala de refeições, gênero de distribuição comum em todo Brasil.
Mesas, cadeiras e canapés compõem o mobiliário do Sr. Chaves. As cômodas e as secretárias são móveis completamente modernos no Brasil e somente encontradiços em um número exíguo de casas. O rio Pelotas tem quase a largura do Essonne em Pithiviers, passa ao lado da habitação serpenteando em uma vasta planície, tendo ao lado oposto uma pequena encosta, onde se vêem algumas casas cobertas de telha. 
Diante da residência do Sr. Chaves estende-se um belo gramado e além vêem-se várias fileiras, compridas, de grossos paus fincados na terra. Têm cerca de quatro pés, sendo cada um terminado por pequena forquilha.
Varais de charque em frente à São João
Essas forquilhas recebem varões transversais destinados a estender a carne seca no tempo das charqueadas. Ao lado desses secadouros existe o edifício onde se salga a carne e onde é construído o reservatório, denominado de tanque".
A charqueada está aberta a visitação pública e conta com serviço de guias, os quais fazem uma completa explanação sobre a história da propriedade, os usos e costumes da vida rural dos produtores de charque e também do sistema de exploração do trabalho escravo.

A casa principal nunca deixou de ser habitada e em parte dela ainda vive parte da família dos proprietários, sendo restrito o acesso aos visitantes.

O ingresso custa R$ 15,00 por pessoa e, com certeza, vale a visita pois há muito que ver, embora seja proibida a tomada de fotografias na maior parte interna da casa.

Pode-se apreciar o pátio interno de trabalho, o dormitório e o refeitório dos tropeiros, a sala de costura, quartos, as salas de estar e de jantar da família, o escritório, armários com passagens secretas e até um banheiro com uma magnífica banheira totalmente entalhada em um único bloco de mármore.

Objetos da lide diária e remanescentes dos escravos também estão em exposição no local.






O CHARQUE E O ESCRAVO DE SALADEIRO

O preparo do charque era feito pela desidratação da carne mediante a salga e secagem ao ar livre. As reses eram compradas de fornecedores externos que as traziam de todo o pampa gaúcho. O sal, principal aditivo e o que mais influenciava no preço final do produto, era importado de Portugal, por ser de melhor qualidade, ou trazido do Nordeste brasileiro.

Nas charqueadas o gado precisava ser abatido como primeiro passo do sistema produtivo e, de acordo com José Veríssimo da Costa Pereira, assim funcionava nos primeiros tempos:.

"Ordinariamente, ao lado do pavilhão principal, estendem-se as ‘mangueiras’, dispostas em série - curralões - separadas entre si por cerca de pedras, ou moirões, cada qual com dois ou tres metros de altura. Do lado exterior fica o respectivo ‘brete’- espécie de corredor estreito- onde o gado é reunido para a espera que precede o sacrifício. Todas as ‘mangueiras’, aliás, estão ligadas entre si por meio de corredores pequenos. A comunicação, ou não, entre os diferentes cercados, realiza-se pela subida ou descida de grandes portas ou tapumes de chapas de ferro regulados por um sistema de contrapesos, que funcionam segundo as necessidades do momento e as circunstancias ocasionais".

Trabalho escravo nos saladeiros.
Como todas as instalações similares da região de Pelotas, também a São João se valia de mão-de-obra escrava pois, apesar da ausência de latifúndios escravistas à maneira das fazendas de café de São Paulo e do Rio de Janeiro, ou dos engenhos de açúcar e fazendas de cana do litoral do Nordeste, o trabalho escravo esteve bastante presente em solo gaúcho e, com muita ênfase, na indústria do charque.

O trabalho nos chamados saladeiros era cruel e a expectativa de vida útil de um escravo nestas condições era de apenas 5 a 7 anos, como bem ilustra a já clássica composição nativista de Neto Fagundes:

Escravo com cicatrizes de açoite. 
  
"Escravo de saladeiro me dói saber como foi
Trabalhando o dia inteiro sangrando o mesmo que o boi
A faca que mata a vaca o coice o laço que vem
O tronco a soga e a estaca tudo é teu negro também

(A dor do charque é barata o sal te racha o garrão
É fácil ver tua pata na marca em sangue no chão
O boi que morre te mata pouco a pouco meu irmão)
 
Pobre negro sem futuro touro olhando humilhado
O teu braço de aço escuro sustentou o meu Estado
Já é hora negro forte que os homens se dêem as mãos
E se ouça de sul a norte que somos todos irmãos"
(Escravo de Saladeiro, Letra e Música de Neto Fagundes) 

A senzala e o cepo de castigo
Há poucos dias pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas iniciaram um projeto escavações arqueológicas na Charqueada Santa Bárbara que deverá estender-se por pelo menos 15 anos, com o objetivo de identificar a história da escravidão no local a partir de peças do século 19 pois há registros da presença negra ali desde 1790 (veja AQUI).

Escavações arqueológicas na Charqueada Santa Bárbara.
Foto: Zero Hora
Segundo dados também da Universidade de Pelotas, durante o auge econômico do Ciclo do Charque o número de abates chegava a um total de 400 mil cabeças de gado por ano. De acordo com as pesquisas de Magalhães e Simões Lopes Neto, na Revista do Primeiro Centenário de Pelotas, editada em 1911, comenta-se que até aquela data teriam sido abatidas 45 milhões de reses e umas 200 empresas charqueadoras já teriam se sucedido.

Do gado era aproveitada a carne para a salga do charque, bem como todos os demais produtos do boi: o couro, os chifres, tendões, os ossos queimados para fabricação de adubo, a língua defumada, o sangue para gelatina e a sebo para o sabão.

Para tanto as instalações da São João contavam com uma fornalha e uma caldeira de ferro trazida da Inglaterra e que ainda remanescem razoavelmente conservadas na propriedade como marco da sua época de ouro.


A visita a Charqueada São João é passeio obrigatório no circuito histórico de Pelotas e com este último relato sobre encerro o conjunto de três postagens sobre este belíssimo e pouco divulgado recanto do Rio Grande do Sul.

Fiquem aqui com mais algumas belas imagens!








COMENTÁRIOS FOTOGRÁFICOS:
Com exceção das imagens com crédito próprio, todas as fotografias de João Paulo Lucena. Na captação das imagens usei equipamento Canon EOS-1D e kit de lentes de 17 a 400 mm.

PARA SABER MAIS:

O Ciclo do Charque - site da Universidade Federal de Pelotas
A Memória do Ciclo do Charque em Pelotas - site da ONG Viva o Charque
Charqueada e Ciclo do Charque - verbete na Wikipedia
Blog O Povoamento de Pelotas - dos pesquisadores Adão Fernando Monquelat e Valdinei Marcolla
Pelotas e o Projeto Monumenta - a preservação do patrimônico histórico e cultural
Os Aristocratas Pelotenses - site da Universidade Federal de Pelotas
Charqueada Santa Rita - museu e hospedagem à margem do Arroio São Gonçalo
Charqueada São João - site oficial da mais preservada das charqueadas
Charque, o sal da carne - diferença entre charque e carne de sol, receitas
A História do Charque - ótimo blog sobre o tema do charque 
- Elementos da escravidão no Rio Grande do sul - Artigo
- Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional - Obra de Fernando Henrique Cardoso, 1977
Viagem no tempo: escavações vão contar a história de escravos no Sul - Artigo jornal Zero Hora, de 21/10/2011
- O Escravo no Rio Grande do Sul - Blog

Um comentário:

  1. Numa observação atenta nas informações sobre as charqueadas notamos alhuns erros históricos certamente por falta de ssesso à bibliografia específica. O sal, por exemplo,vinha de Cadiz, salina no sul da Espanha, considerado o melhor, forte e eficaz para o trabalho de salga. Vinha em barricas e mais caro, com imposto cobrado que originou um dos motivos da eclosão da Revolução Farroupilha. Por isso usava-se o sal de Portugal,mais barato, porém de qualidade inferior. Esse é um dado importante para a História.

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