Renata "Kika" Bradford. Fonte: O Globo |
Dando seguimento à serie de postagens que fiz aqui no blog com informações e opinião sobre o acidente fatal havido no início deste mês com Bernardo Collares em El Chaltén, Argentina, pela primeira vez desde o ocorrido a sua parceira de escalada, Renata Bradford, veio à público para dar uma versão mais detalhada dos fatos.
Do depoimento feito à imprensa e de todas as notícias já divulgadas, para mim ainda fica em aberto somente um ponto: - Por que os escaladores não estavam utilizando rádio ou qualquer outra espécie de comunicador para informar o acidente tão logo fosse possível?
Se o resgate poderia ou não chegar a Bernardo não é algo que pudesse ou devesse ser previsto ou avaliado no momento do acidente. O certo é que comunicadores e/ou sinalizadores de socorro são equipamentos de segurança imprescindíveis em uma escalada com o nível de dificuldade extrema como a do Cerro Fitz Roy.
Segue abaixo o relato integral feito para o Jornal O Globo, do Rio de Janeiro, onde Kika descreve o que aconteceu na escalada.
"RIO - A escaladora carioca Kika Bradfford relata o momento da despedida de Bernardo Collares no Monte Fitz Roy, na Patagônia argentina com emoção. Ao quebrar a bacia no Monte Fitz Roy, ele não pôde prosseguir a escalada no último dia 3 de janeiro. Collares, já sabendo que sua situação era bem crítica, mostrou-se muito preocupado com a amiga, que teve que descer sozinha uma montanha que mesmo os escaladores mais experientes preferem enfrentar com um parceiro ou uma equipe. Kika desceu com a esperança de conseguir um resgate a tempo para salvá-lo. Não foi possível. A família de Collares já o considera morto.
Durante esta entrevista, Kika detalha os últimos momentos que passou com o companheiro de escalada e a grandeza dele ao dizer adeus à amiga.
Como foi a última conversa com Bernardo?
KIKA BRADFFORD: No nosso último diálogo, ele me disse: "Kika, daqui eu só saio de helicóptero e você precisa descer sozinha e buscar ajuda. E se o helicóptero não vier hoje"... Ele não completou a frase. E eu respondi: "Berna não fala isso, porque hoje não vou conseguir chegar à base, vou tentar chegar amanhã". Com dores intensas, ele teve a grandeza de dizer: "Kika, você não teve culpa e, se alguém perguntar qualquer coisa, todas as decisões a gente tomou junto". Preparei as ultimas coisas, deixei mais água, botei mais roupas nele, a balaclava, lhe dei remédio e disse: "Estou indo".
Ele falou alguma coisa?
KIKA: Sim, me recomendou calma. "Vai com muita calma". Beijei a testa dele, disse "eu te amo" e desci. Saí de perto do Berna no dia 3 de janeiro, às 14h.
Conseguiu manter a calma?
KIKA: No início da descida, a sensação era de que eu não era eu, que era só um corpo e que esse corpo estava somente focado nos procedimentos. Eu tinha de descer o mais rápido possível para acionar o resgate. A única chance de o Berna sobreviver era eu chegar à base da montanha.
Como foi o início da escalada de vocês no Monte Fitz Roy?
KIKA: Começamos no dia 1º de janeiro. Às 14h30m, demos início à escalada. Nosso objetivo do dia era escalar cerca de 600 metros. Se conseguíssemos 300 metro, já estaríamos satisfeitos. O ritmo da escalada estava bom e, surpreendentemente, chegamos aos 300 metros, às 17h30m. E, como lá só escurece às 22h30m, seguimos para o nosso objetivo, chegando a 600 metros, às 21h. Estávamos ligados nas coisas técnicas, mas ficamos deslumbrados com a beleza do por do sol no Gelo Continental, que é a maior massa de gelo da face da terra, fora dos polos. Vimos montanhas lindas.
Como foi o acidente?
KIKA: No dia 2, começamos a escalar às 7h30m. O objetivo era subir uns mil metros no segundo dia de escalada, o que conseguimos às 22h. Foi quando começamos a questionar se iríamos continuar rumo ao cume.
Por quê?
KIKA: De madrugada, começou a nevar. A previsão era de 0,5 milímetros de precipitação à noite, mas o dia transcorreria sem precipitação alguma. Mas acordamos com uma realidade diferente: vento forte e, o pior, muita névoa. Resolvemos descer e abortar a missão.
O que ocorreu?
KIKA: A melhor opção para descer era subir mais cem metros e descer por uma outra via. Subimos 30 metros e não conseguimos visualizar mais por onde iríamos subir. Descemos pela via por onde havíamos subido. Fizemos quatro rapéis. Completei o quinto rapel e quando Berna fazia o mesmo, deu um grito. O meu reflexo foi agarrar a corda, que, por sorte, havia se prendido a uma pedra acima, o que impediu que ele caísse. Berna, porém, teve uma queda de cerca de 20 metros. Uma ancoragem dele havia se desprendido e, por isso, ele caiu. Comecei a criar ancoragens mais fortes para segurar bem a corda do Berna, quando ele despertou de um desmaio de dois minutos.
O que ele disse?
KIKA: Perguntou o que havia acontecido. Expliquei que a ancoragem dele havia saído. Ele começou a reclamar de fortes dores e inúmeras vezes perguntou o que tinha ocorrido e a afirmar que tinha quebrado o dedo da mão esquerda. Em seguida, afirmou: "Kika não estou entendo nada, não sei nem onde estou". Isso foi um choque para mim. Eu falei que a gente estava no Fitz. Apesar da dificuldade de concentração e da dor extrema, ele seguiu as instruções. Eu tirei a mochila dele e o levei ao platô. Botei um isolante térmico para proteger seu corpo da pedra e o saco de dormir. O nível da dor dele era imenso. Ele reclamava muito da dor no quadril, no cóccix e na coluna lombar. Mas eu assegurei o maior conforto possível e precisei buscar a corda que havia caído. Por sorte, ela estava num platô a 60 metros. Demorei uma hora. Quando voltei, Berna estava lúcido, mas sua dor aumentou. Ele perguntou se eu havia recuperado a corda. Já percebia tudo à sua volta.
Como você desceu?
KIKA: No dia 3 de janeiro, após me despedir de Berna, fiz rapéis das 14h às 22h40m. Jamais faria uma escalada dessas sozinha. Encontrei o mesmo platô, no qual a gente havia passado a primeira noite na montanha. Pela dificuldade de visualizar o caminho e a alta probabilidade de me perder, esperei o amanhecer no platô. O vento estava forte e havia começado a nevar. Eu tremia e pensava muito no Berna. Às 5h45m, reiniciei a descida.
E como foi?
KIKA: O vento continuava forte, mas a visibilidade tinha melhorado, embora estivesse nevando. Eu deveria estar a 400 metros da base. Continuei descendo e cheguei ao local a 300 metros da base. O cansaço físico e mental era grande, e os rapéis cada vez mais desconfortáveis. Mas a minha motivação grande era chegar e tentar o resgate.
Você correu mais riscos?
KIKA: Num dos rapéis, a corda se prendeu a uma pedra. Para soltá-la, precisaria subir mais 40 metros, com grau de dificuldade alto. Resolvi cortar a corda. Continuei a descida com uma corda de 60 metros e a outra cortada, com 17 metros. Num próximo rapel, a corda ainda prendeu três vezes, eu tive que cortá-la, ficando com cada vez menos corda. Entre esses vários rapéis, mais um susto. Na pressa de sair de um lugar exposto ao vento e à neve, passei a corda por duas ancoragens. Uma delas falhou, mas a outra segurou. O incidente aumentou a minha tensão.
Quando chegou à base?
KIKA: Cheguei no dia 4, 24 horas depois de eu haver deixado o Bernardo. Duas horas e meia depois, encontrei o meu namorado, Juan Manuel Sanchez, que mora em Chalten, e um amigo dele, Luiz. Passei ao Luiz todas as informações para que as transmitisse por rádio à coordenação de resgate. Foi o primeiro momento em que eu me permiti chorar e perder um pouco do controle. Caminhamos por quatro horas até um abrigo, onde encontrei uma pessoa da comissão de resgate.
Quando soube da impossibilidade do resgate?
KIKA: Na noite do dia 4, a comissão de resgate e escaladores voluntários se reuniram. No dia seguinte, cheguei a Chalten, às 11h, e falei com a chefe da comissão de resgate para saber o que estava sendo feito. Ela disse que os riscos eram muito altos por causa do clima e que, infelizmente, nada poderiam fazer."
Fonte: Jornal O Globo, 17/01/2011
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